A única certeza na vida.

Ela era alta, cabelos preto-azulados e tinha a mesma mania de sorrir enquanto falava apenas para parecer simpática. Isso não quer dizer que tornava a situação mais confortável. Suspirei.

-Oi, DeeDee.
-Ah, que bom que você sabe quem eu sou.
-Achei que ia pro inferno direto…
-Sou apenas um corredor entre a sua vida e o que você crê encontrar após sua morte. Se você acha que merece ir para o Inferno de Lúcifer, então vá.

Tudo bem. Eu podia muito bem ir pro inferno com a justificativa óbvia do meu suicídio. Mas eu também podia me dar uma nova chance e reencarnar.

-Eu já fui eu mesma, DeeDee?
-Como assim?
-Sabe…Mesmo que vivendo em outra época, eu tinha a mesma personalidade, o mesmo gênio depressivo? As mesmas pessoas me influenciaram da mesma maneira? Ou foi tudo diferente e eu simplesmente morri de alguma peste ou de um tiro durante a primeira guerra?
-São perguntas que eu não posso responder e você sabe.
-Tá, tá…

Antes que alguém pergunte, DeeDee é de Death. Morte, saca? O fim da linha, aliás, o corredor para o fim da linha. E eu me matei numa crise de depressão por ter perdido o único homem que realmente me fez feliz um dia. Eu também estava meio cansada de viver. Sabe como é…Sempre tem que comer, dormir, cagar, enfim….Bem que podiam mudar essa configuração básica do ser-humano de vez em quando. Aliás, pra ninguém perguntar também, eu resolvi me jogar do vigésimo andar. Ah, morri com vinte anos de idade, se é que vocês pegaram a piadinha.

-Ok, eu posso escolher ir por um desses corredores, certo?
-Certo.
-E cada um representa o que eu quiser que eles representem pra mim, certo?
-Certo.
-E se eu quiser ficar aqui pra conversar e passar um tempo, pode?
-Victória, pára de enrolar!
-Ah, vai, Death, eu sei que você sempre quis uma companhia. Desde que o Morpheus morreu, você não foi mais a mesma. E eu sei que você sabe que eu também perdi o meu irmão. Vamos jogar um xadrez e prosear, vamos?
-Você é uma 171, sabia?
-Sei. Quando eu sair daqui, mande um abraço pra/pro Desejo, está bem? Sem ela eu não estaria aqui, se é que você me entende…
-Tá, tá…vamos logo com isso...

O bar salvador.

-Uma coca-cola, por favor?!
O balcão de luz iluminava meu rosto e, do espelho à minha frente, via a cena grotesca que estava me tornando. As rugas eram muito visíveis para uma mulher de 22 anos. Seria o cansaço ou a abdicação de ingerir qualquer coisa que possa levar à algum tipo de alucinação? Tanto faz! Eu me sentia velha e indiferente para tudo o que acontecia á minha volta.
Estava num bar do centro. Nada muito fora do comum: som alto, garotas de mini-saia, caras arrogantes e necessitados, baristas prontos para aguentar bêbados carentes e os perdidos, como eu. Os perdidos (e perdidas) são sempre aquelas pessoas que nunca bebem, ou bebem sem exageros, apenas observam o ambiente e concluem que a vida é uma droga.
-Moça? Sua coca com limão.
-Ah, obrigada.
Não sei exatamente quanto tempo se passou, mas em menos de 2 minutos eu consegui relembrar, com detalhes, a aparência que eu estava no enterro do meu irmão, 5 anos atrás. Me olhar no espelho e ver a cara inxada, caída, mas ainda cheia de força. Lembro de analisar no reflexo cada detalhe em minha tez se estava tudo certo. Se aquilo realmente estava acontecendo… O que fez com que eu lembrasse, também em detalhes, da crise de choro por causa de algum garoto. O fato maior, que seria o garoto, eu já não lembro mais. É engraçado que, em nenhuma das ocasiões eu demonstrava aflição e agonia a ninguém. Apenas ficava na minha, observando e ruminando.
Como agora, em frente ao balcão de um bar, enquanto o cara ao lado fica me paquerando e eu simplesmente me concentro no gelo dentro do copo de coca-cola. Ele se aproxima fisicamente e eu me levanto no mesmo instante, levando o copo comigo. Estou de saco-cheio. É sempre a mesma merda. Você vai para um bar, RELAXAR e aparece um ass-hole querendo conversa. Será que ele achou que eu estava bebendo alguma bebida especial? Eu nem vim vestida decentemente. Apenas botei uma calça jeans velha, tênis e regata preta (roupa de barizon, como dizia uma amiga minha). Apenas lápis preto borrado no olho e uma cara de tédio facilmente reconhecível.
Como pode um homem charmoso chegar perto de uma mulher com uma expressão negativa sem mais nem menos? É a revolta que o atrai? Porque eu tentei ser a garota alegre e irritante uma vez e me tacharam como a “de boca calada, é fácil”. Eu não preciso dessa pose ou disfarce para afastar indivíduos que procuram um mistério, um leão enjaulado por trás do maxilar enrijecido que eu insisto em manter quando estou pensando. Quanto ao leão, uma ou duas pessoas o viram. Será que sua pouca exposição à luz do sol o fez ficar tão famoso e, agora, querem tentar me domar?
Tanto faz também. Encostar as costas ligeiramente nuas na parede gelada e sentir o gelo queimando por dentro me acalma. Estou num canto tão escuro quanto a minha camiseta e só sei que há casais se amassando ao meu lado direito porque estes fazem movimentos que tampam a luz que vem do balcão e isso faz com que minha pupila se contraia e dilate de maneira frenética. Isso me deleita.
Ah, a beleza de parar, observar e não ser observada. Finalmente me sinto confortável o suficiente para relaxar as sombrancelhas e não ter mais dor de cabeça por tensão fútil. Eu não deveria ter pegado esta coca. Assim poderia sentir a pressão caindo e ver as coisas turvas e a sensação de fraqueza, de necessidade. Orgulho ferido. Mas já que estamos aqui e eu já tenho glicose no meu sangue, vamos avaliar de novo a situação.
Eu sou uma mulher de 22 anos, recém-formada, trabalhando, morando com os pais, solteira e desinteressada em relacionamentos, apesar da carne arder algumas vezes e eu ter de apelar para o terrível one-night-stand – Deus, isso é tão frio. Parei no bar com dois amigos, mas me perdi deles (de propósito aliás). Ambos estavam acompanhados até cinco minutos atrás e agora devem estar fodendo alguma das garotas de mini-saia. Só terei sinal de vida deles quando meu celular tocar. Eu poderia até ir embora, mas vê-los satisfeitos e ouvir as peripécias sexuais me distrai, me faz refletir o quão fundo de poço eu posso me tornar. Sendo que amanhã de manhã eu sei que acordarei com a diva encarnada, vestirei minha saia social mais curta, colocarei minha meia rendada 7/8 com cinta-liga, salto alto e a camisa social, é claro. Look completo de uma moça vulgar e animada que esconde o lado Holden Caufield, depressivo compulsivo, sarcástico e, até mesmo, psicopata dentro de um olhar aparentemente curioso e inocente.

“Maybe I should look away
Before I ruin this
Maybe I should pick the time
Before I pick the place” – Don’t Get Close – Slipknot.
Boa Noite!